terça-feira, 29 de julho de 2014

os filhos dos outros




Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o  melhor do mundo são as crianças.
Liberdade
Fernando Pessoa in "Cancioneiro"

Então, e por esta ordem de ideias, quando se trabalha com crianças,  tem-se o melhor trabalho do mundo. Temos o melhor de dois mundos. O mundo pequenino que eles têm, cheio de lógicas, de entusiasmo, de alegria, e o mundo que eles nos dão sem saberem quando nos transportam para as nossas próprias vivências da infância e nos fazem "revisitar-nos" a nós próprios no passado, trazendo ao de cima, mas no interior, mágoas de infância, alegrias e "desalegrias" da escola. Ao olhar para eles vemo-nos a nós.



Na maioria das vezes compreendemos o processo pelo qual passamos, outras vezes (ainda) não. De qualquer das formas é algo que nos é dado sem pedirem nada em troca, até porque nem têm noção da riqueza que trazem para a nossa vida.
Enquanto pais, a parentalidade nasce em nós muito antes de nos propormos a ser pais, do teste dar positivo, da primeira cólica, da primeira noite em branco ou antes da primeira birra. É um caminho que começa na infância de cada um de nós e que pelo meio pode dar-nos oportunidade de rectificar a nossa própria história infantil. 
Enquanto profissionais que aprendemos a lidar com as peças por encaixar na criança, vemos o seu outro lado, o que esteve por detrás do nascer daquele comportamento, que pouco a pouco se tornou problemático e se transformou em mal estar. Primeiro para a criança e só depois para os pais
Ainda em termos profissionais, mas reportando-me aos tempos de estudante, eu percebi claramente qual seria a minha maior dificuldade no que se refere à consulta psicológica com crianças, é depois de fazer a avaliação do "problema" com os pais e com a criança, perceber que a causa do "problema" é da responsabilidade dos pais.
Como é que se diz a um pai que procura uma resposta exterior à sua responsabilidade (eu) de forma isenta e responsável acerca de um "problema" que ele próprio criou ao seu filho, ainda que inconscientemente....?!
Como é que faz? "Olhe se quer que o seu filho deixe de ser tímido, talvez fosse boa ideia, não sei, digo eu, deixar de lhe chamar parvo, inútil, ou fazer comparações com os amigos dele. Não sei. Já pensou em experimentar incentivá-lo, fazer-lhe elogios acerca das suas próprias qualidades (que são as dele e não as que gostaria que ele tivesse), já pensou em aceitar o seu filho como ele é? E já agora em se aceitar em primeira lugar a si?"
Bem estas são as ideias que povoam o meu pensamento em nano segundos, depois enfrento a situação e este processo não é resolvido em dez minutos como ditaria a minha paciência, mas através de um longo percurso com os pais e com os seus filhos.
Nem todos os dias chego a casa e sinto que tenho o "melhor trabalho do mundo", porque lido com o avesso das crianças, com o avesso dos pais, e daquilo que as suas relações escondem. Mas de uma forma ou de outra os casos ficam fora de casa.
No trabalho é assim. Mas então e os filhos dos outros? Os filhos dos nossos familiares? Os filhos dos nossos amigos?
O que é se faz quando se vê o desenvolver de um processo psicopatológico entre pais e filhos, mesmo em frente do nosso nariz?
O que é que se faz quando se vê pequenos sinais que descrevem um comportamento que podem (podem) levar a um desvio?
Não se faz nada.
Porque todos temos traumas, todos temos os nossos problemas por resolver, e lidar com as nossas fragilidades faz-nos crescer mais fortes e conscientes do nosso percurso. Faz-nos sobreviver.
Por isso não se faz nada. Porque todos fazemos erros todos os dias e eventualmente, vamos ter consciência disso mesmo e tentar resgatar as relações que temos com os outros, filhos, pais ou amigos.
Ou então não. A vida encarregar-se à, a seu tempo de "se resolver sozinha".

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